Do jornal Valor Econômico
22/11/2010 - O escritório de advocacia do futuro não ocupará salas vultosas de grandes edifícios, com placas de mármore na entrada indicando o nome dos sócios. A nova firma será virtual e, no lugar do mármore, entrará a identificação dos profissionais com seus endereços eletrônicos, com @ e o ponto.com. As salas de reunião terão a única função de permitir encontros com clientes e os livros serão meramente decorativos. A previsão é de Stephen Zack, presidente da American Bar Association (ABA). "Nos próximos dez anos, a advocacia vai sofrer mais alterações do que nos últimos cem", afirma.
Zack é o primeiro cubano-americano a comandar a ABA, que, nos Estados Unidos, equivale à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e adotou a meta de permitir que as classes mais pobres da sociedade americana tenham acesso ao Judiciário. Para quem vive no Brasil, pode parecer uma contradição falar em dificuldades de chegar à Justiça no país mais rico do mundo, mas Zack relatou que esse é um problema crescente naquele país, principalmente após a crise econômica, que teve início em setembro de 2008. "Essa é a minha preocupação número um", diz o advogado.
Com o advento da crise, as Cortes dos Estados Unidos sofreram redução em seus orçamentos. Muitas fecharam ou passaram a funcionar apenas quatro dias por semana. Na situação inversa, houve uma explosão de casos na Justiça de pessoas que sofreram prejuízos financeiros com a crise. Isso gerou um problema adicional para a advocacia, pois muitas pessoas dispensaram os advogados e passaram a se defender por conta própria nos tribunais. "Infelizmente, 80% das pessoas pobres não têm acesso às Cortes", afirma. "Para se ter liberdade, é preciso um Judiciário independente, com orçamento suficiente para funcionar".
Zack advogou para Al Gore no célebre caso em que a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu contra a recontagem dos votos na Flórida, o que resultou na vitória de George W. Bush nas eleições presidenciais de 2000. "Eu precisava de mais um voto", diz referindo-se ao julgamento, que terminou em cinco votos a quatro e ainda hoje é alvo de discussões nos EUA.
O advogado é sócio do escritório Boies, Schiller & Flexner LLP, um dos mais renomados dos Estados Unidos. Na quarta-feira, ele recebeu o Valor no 20º e último andar de um edifício de grandes escritórios em Brasília, de onde falou sobre a advocacia do futuro.
Como o acesso dos mais pobres à Justiça se tornou um problema nos Estados Unidos?
Stephen Hoje, infelizmente, 80% das pessoas pobres não têm acesso às Cortes. Na Flórida, menos de 1% das pessoas vai à Justiça. Isso é quase nada. É um grande problema, pois, com a crise econômica, o orçamento das Cortes foi reduzido e algumas simplesmente fecharam. Outras passaram a funcionar apenas quatro vezes por semana. Não falo sobre o salário dos juízes, mas sobre todo o sistema. Nos Estados Unidos temos três poderes iguais. É nisso que a nossa democracia se fundamenta. Mas eles não conseguem ser iguais se não puderem ser sustentados.
A crise americana aumentou a participação do Judiciário na solução dos conflitos?
Sim. Agora, temos dois desafios. A crise causou uma epidemia de fechamentos. E isso não afetou apenas as grandes companhias. Tornou-se uma crise para todos, para as pessoas comuns que precisam da proteção das Cortes. Outro problema foi que muitas pessoas passaram a se representar perante os tribunais. São pessoas que não têm treinamento jurídico. Então, nós vivemos uma explosão desse tipo de litígio nos qual as pessoas se representam, sem advogados, e também a falta de orçamento suficiente para as Cortes.
As Cortes devem se abrir para a sociedade? No Brasil, as sessões do Supremo Tribunal Federal são transmitidas pela TV.
Eu acho isso excelente. Quanto mais o público vê que essa não é uma sociedade secreta, atrás de portas fechadas, melhor. Quando saí de Cuba, aos 14 anos, em 1961, houve um ataque ao Judiciário e essa foi a primeira evidência de que iríamos perder a nossa liberdade. Começaram a controlar as Cortes, a intimidá-las. Naquele ponto, vimos que não teríamos liberdade. Para se ter liberdade, é preciso um Judiciário independente, com orçamento suficiente para funcionar. Pode-se intimidar as pessoas pela força ou simplesmente não dando recursos que elas precisam.
O Sr. é o primeiro cubano-americano a presidir a ABA?
Em 130 anos, é a primeira vez que temos um cubano-americano na presidência da ABA. Tivemos três mulheres e dois afro-americanos. Há 52 milhões de hispânicos nos EUA. É quase a população da Itália, que é de 56 milhões. Em 20 anos, a cada mês, 30 mil hispano-americanos terão 18 anos. Em 2050, um em cada quatro americanos terá parte de sua família hispânica. Isso vai mudar muito a cultura do país.
O Sr. acha que o mundo seria diferente, hoje, se o senhor tivesse vencido o caso Bush versus Gore, há dez anos?
Fui o advogado de Gore. Eu precisava de mais um voto da Suprema Corte. Eu confio no sistema de Justiça americano. Na China, um estudante me perguntou o que eu aprendi nesse caso, pensando que me deixaria desconfortável. E eu respondi que tinha aprendido que, quando temos um problema nos EUA, nós recorremos aos nossos advogados e não aos nossos generais. Essa é uma importante lição do caso Bush versus Gore: a de que somos um país de leis. Tivemos o aniversário de Watergate e o que ele nos ensina? Que o homem mais poderoso do mundo, o presidente dos EUA, não está acima da lei.
O Sr. sente algum arrependimento no caso Bush versus Gore? A decisão poderia ter sido outra?
Bem, eu me arrependo de não ter vencido (risos). Eu gostaria que a decisão tivesse sido diferente. Gore disse aos advogados que o representavam e a mim: Qualquer que seja a decisão, eu não quero que vocês a critiquem. Ele aceitou a decisão, mas as pessoas não deram crédito suficiente a ele. Vamos falar sobre isso para sempre.
O seu escritório ganhou uma causa de US$ 700 milhões no setor de seguros envolvendo os ataques de 11 de Setembro. O terrorismo ainda é um desafio para os tribunais dos EUA?
Sim. Representamos o Banco Lloyds de Londres e ganhamos a causa. Os casos judiciais envolvendo os ataques, em 11 de Setembro, estão resolvidos, mas o terrorismo não. Infelizmente, será um desafio para a Justiça em todos os países pelo resto das nossas vidas e mesmo depois disso. É algo que as nossas crianças terão de viver. Será uma preocupação diária. Eu estava no tribunal naquele dia e, quando vimos o segundo avião atingir o prédio, o repórter disse: Meu Deus, um segundo acidente. A nossa mente não poderia aceitar que aquilo era intencional. Mas, infelizmente, foi intencional. Os ataques mudaram o mundo como conhecíamos - um lugar onde tínhamos liberdades que, agora, não existem, como a de ir a um aeroporto e as pessoas não removerem as suas roupas. Fui a São Paulo e, em todos os prédios que entrei, tive de mostrar meu passaporte. Não há um prédio em que não se peça identificação. Liberdades foram perdidas para sempre.
A advocacia está ficando mais internacional? O Sr. defende que advogados dos EUA possam atuar no Brasil e vice-versa?
Na Flórida, dizemos que não gostamos de advogados de Nova York. Mas, tem de haver reciprocidade.
No Brasil, a OAB não gosta dessa ideia.
Ninguém gosta. Nenhum advogado gosta. Mas o advogado faz o que o cliente exige. Eu respeito a OAB. É uma grande associação e o sistema de Justiça do Brasil é um dos que processa mais casos do que qualquer outro do mundo. Você tem de respeitar isso. Mas, ao fim, o que acontecerá no futuro será o melhor em benefício dos clientes. Será o que eles exigirem.
O que os clientes vão exigir dos advogados no futuro?
Eu acredito na aplicação global da lei. Os nossos clientes insistem nisso. Você sabe o ditado: siga o dinheiro. A aplicação da lei deve seguir os movimentos da economia. Estive na Inglaterra no mês passado para falar sobre um novo código de ética global. Como será a prática da advocacia em 2020? Como proteger a integridade do sistema legal?
E como será a prática da advocacia?
Haverá muitas oportunidades, mas também muitos riscos. Quando eu me formei, o advogado recebia um anel e uma beca. Hoje, você registra o seu nome de domínio. Ao invés de escrever Stephen Zack, Attorney of Law (advogado), eu usoszack@bsfllp.com, que é o meu nome de domínio. A firma de advocacia do futuro não será mais em grandes edifícios. A única razão de termos escritórios será para fazer reuniões, apenas para conversar com os clientes. O resto será feito nos computadores. A maioria dos advogados nos EUA atua sozinha ou com poucos parceiros. Agora, eles podem competir com os grandes escritórios, se unindo, fazendo uma firma virtual. Eles não terão mais pilhas de livros no escritório. A única razão de ter livros no escritório será para convencer os clientes que os advogados podem ler (risos). Livros serão como quadros. Vivemos num novo mundo e a prática da advocacia vai mudar mais nos próximos dez anos do que mudou nos últimos cem.
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