quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O pesadelo judicial eletrônico - Ronaldo Cramer

07/10/2014 

Existe uma sigla que está na boca de boa parte da advocacia brasileira: PJe. Essa palavra, que deveria significar "processo judicial eletrônico", parece se referir ao "pesadelo judicial eletrônico" pelo qual têm passado os advogados nessa fase de transição do processo de papel para o processo eletrônico.
 
O PJe não é o único sistema de peticionamento eletrônico, mas, em decorrência dos vários transtornos que causa, tornou-se a síntese da realidade caótica em que se transformou o processo eletrônico.
 
Deixo claro, desde logo, que sou a favor do processo eletrônico. Não há dúvida de que a virtualização dos atos processuais pode desburocratizar a atividade jurisdicional e eliminar os tempos mortos do processo. Todavia, não posso concordar - e é difícil achar quem concorde - com o modo como o processo eletrônico está sendo introduzido pelo Judiciário.
 
A implantação do processo eletrônico tem sido uma história de precipitações, erros e falta de diálogo por parte do Judiciário. Para entender as agruras da advocacia, voltemos ao ano de 2006.
 
Naquela ocasião, foi publicada a Lei 11.419, que instituiu a informatização do processo judicial, prevendo a tramitação, a comunicação e a transmissão de atos processuais por meio eletrônico. A ideia da lei foi criar um processo sem papel, que se desenvolvesse inteiramente pela internet.
 
A lei foi cautelosa, pois previu a implementação gradual do processo eletrônico nos tribunais, a prorrogação dos prazos na hipótese de queda de rede, a possibilidade do uso do papel em caso de impossibilidade técnica e - o mais importante - a obrigatoriedade de os tribunais oferecerem equipamentos de peticionamento eletrônico aos advogados.

No entanto, a aplicação da lei pelos tribunais não foi nada prudente. O Judiciário não aguardou a inclusão digital da advocacia e implantou, praticamente do dia para noite, os sistemas de processo eletrônico. Num país que conta com somente 39% de domicílios urbanos com conexão banda larga, segundo recente pesquisa da Anatel, muitos profissionais estão ficando à margem do processo eletrônico (e, por conseguinte, sem poder exercer sua profissão), porque ou não têm equipamento adequado, ou não possuem internet de alta velocidade.

O Conselho Nacional de Justiça, indutor dessa nova realidade, permitiu que cada tribunal criasse o seu próprio sistema de processo eletrônico, o que se revelou um desastre. Os diversos sistemas existentes não dialogam entre si, comprometendo a comunicação entre os órgãos judiciais, e obrigam o advogado a ter que conhecer diferentes procedimentos para peticionar nos tribunais, criando graves transtornos ao exercício da nossa profissão. É como se houvesse, na prática, um código de processo em cada tribunal.

A implementação dos sistemas de processo eletrônico ocorreu sem fase experimental, momento em que se poderia compreender as demandas dos usuários, assim como evitar boa parte dos erros que hoje se sucedem. Esse açodamento por parte do Judiciário não encontra nenhuma justificativa razoável, a não ser que certos dirigentes de tribunais queiram ser reconhecidos como aqueles que "inauguraram a obra".
 
Os tribunais não se prepararam devidamente para pôr em funcionamento os portais na internet nos quais tramitam os processos eletrônicos. Cada vez são mais comuns casos de queda de rede, de fatal error do programa, de ataque de hackers e de congestionamento de acesso. O TRT da 1ª Região, com seus constantes problemas de instabilidade do sistema, é exemplo emblemático desse problema.
 
Houve muito pouco diálogo com a advocacia na concepção dos sistemas. Recebemos um "pacote pronto", e agora temos que nos adaptar às exigências, muitas vezes absurdas, de cada sistema. Há sistema que reclama a digitalização de documentos por meio da versão tal de certo programa, outro que somente admite uma versão diferente, e por aí vai.

Na falta de organização por parte do Judiciário, coube à OAB o papel de esclarecer a sociedade civil e qualificar a advocacia para lidar com o processo eletrônico. Exemplo dessa iniciativa é a OAB/RJ, que, com seu programa Fique digital, oferece desde cursos de peticionamento eletrônico até equipamentos de acesso ao sistema, com tutores treinados para ajudar os advogados.

Com o processo eletrônico, também adveio uma novidade: a desculpa de que o sistema não deixa, ou o sistema exige. O sistema, que nada mais consiste do que o programa que gerencia a tramitação do processo judicial na internet, foi alçado à categoria de grundnorm do nosso ordenamento jurídico. De nada adianta a Constituição e a lei garantirem certo comportamento processual, porque, agora, o sistema também tem que permitir.

Além de todos esses problemas, cresce o receio de que o processo eletrônico possa afastar, ainda mais, o contato entre advogado e juiz, e entre advogado e serventuário. Como não há mais processo físico, pois tudo é feito de maneira virtual, o advogado, a rigor, não precisa ir mais à serventia judicial para acompanhar o processo, tirar cópia de determinada decisão, apressar a juntada de petição ou pressionar a ida dos autos à conclusão. Sem a necessidade da presença do advogado, os fóruns tendem a ficar vazios, e, com isso, se pode criar a percepção de qualquer contato presencial é dispensável. Neste passo, não podemos esquecer que o processo eletrônico veio para informatizar os atos processuais, e não as relações entre os sujeitos do processo.

Infelizmente, essa é a realidade que enfrentamos hoje com o processo eletrônico. A virtualização do processo judicial, uma medida relevante para prover mais acesso à justiça, está sendo introduzida de forma precipitada, desorganizada e arbitrária, tornando o exercício da advocacia em alguns tribunais uma tarefa penosa e quase impossível.

A sensação atual é que o processo eletrônico, do que jeito que está, veio para resolver os problemas que nós não tínhamos.

Ronaldo Cramer é vice-presidente da OAB/RJ.

fonte: Publicado no site Jota e www.oabrj.org.br

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