segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Caricatura depende de autorização do caricaturado, diz especialista


10-09-2012

Fonte: revista eletrônica Consultor Jurídico

Para o professor do Mackenzie Campinas Marco Antonio dos Anjos, humor é coisa séria. Tanto que foi a base de sua tese de doutorado, defendida em 2009 pela Universidade de São Paulo, onde fez todo seu percurso acadêmico.

Na tese, que analisa o humor sob o ponto de vista do Direito de Autor e da Personalidade, Marco Antonio aponta para as dificuldades que a Justiça enfrenta ao lidar com o tema. Segundo ele, no âmbido do Direito, falta um tratamento uniforme para a questão, dada a escassez de estudos sobre o humor. 
Em entrevista à ConJur, ele contou detalhes de sua tese e de suas ideias. Ele defende, por exemplo, que caricaturas só poderiam ser publicadas com o direito do caricaturado, e aponta para contradições relativas à liberdade para a paródia humorística e as restrições à paródia séria.
A questão ganhou relevância nos últimos meses, já que casos envolvendo humoristas tiveram forte repercussão na imprensa e na sociedade, como a condenação do comediante Rafinha Bastos por danos morais em processo movido pela cantora Wanessa Camargo; a decisão que considerou legal as paródias da Rede Record em relação a apresentadores e programas da Globo; e a decisão do Tribunal Superior Eleitoral que, nas eleições de 2010, liberou fazer humor com candidatos.


10-09-2012

Entrevista da Conjur com professor especializado em Direito e humor

Fonte: revista eletrônica Consultor Jurídico
Como os juízes julgam casos envolvendo o humor?
Não há um padrão exato. Parece que o que se refere ao humorismo depende mais da sensibilidade de quem julga, do que de um parâmetro concreto. Dou o exemplo do caso do Rafinha Bastos: talvez ali tenha acontecido mais um humor de má qualidade do que efetivamente uma ofensa.
O senhor achou cabível o pedido de indenização naquele caso?
Sim. É difícil analisar até que ponto a pessoa tenha realmente se incomodado com aquilo, mas vendo de longe, pelos meios de comunicação, parecia uma piada mal colocada, e não algo que tenha tido intenção de ofender. Existem exemplos que não tiveram muita repercussão na mídia que parecem ser mais ofensivos.
Poderia dar um exemplo?
O caso do Pânico: uma pegadinha que consistia em jogar baratas vivas em quem passava na rua. Isso me parece bastante ofensivo. O caso já foi julgado em São Paulo e no STJ, e houve a condenação. A mídia deu atenção para isso, mas não tanta como no caso anterior.
Sobre programas humorísticos, o senhor diz que é necessário que a pessoa seja avisada previamente do contexto em que ela vai ser inserida. Isso não viola a liberdade do apresentador?
Não. Eu tento trazer para essa área um conceito que já é muito comum no biodireito, que é do consentimento informado.
O que é isso?
Imagine um casal que vai se submeter a uma reprodução humana assistida. Eles têm que receber uma informação pormenorizada para que eles saibam exatamente tudo aquilo que acontece, a possibilidade de uma gravidez de muitos filhos e tudo mais, para que ele possa dar o chamado consentimento informado.
E no caso do humor?
Trazendo para o humor, conseguir uma autorização para uma pessoa, pura e simples, de que ela tem uma imagem e voz divulgadas no programa humorístico me parece pouco. A pessoa deve saber que aquilo vai ser transmitido em um programa humorístico e que ela pode ser colocada em uma situação de riso.
O caminho é pela prevenção?
Com a autorização no meu banco de dados, eu estarei tranquilo. O que poderia parecer um problema no início talvez a médio e longo prazo desse tranquilidade, porque o dano moral não tem critério. Você não tem um parâmetro.
E nos casos de programas de talk show, estilo Jô Soares ou do Danilo Gentile?
Vai entrar no dano moral. Mas é muito difícil imaginar que alguém vai a um programa desses e não tem a noção que o entrevistador terá um viés humorístico, então há a aceitação tácita. Teria que ser um abuso mesmo, alguma coisa que vai depender do caso concreto. Qual é o padrão para isso? Não há.
Há quem diga que vivemos uma 'ditadura' do politicamente correto, outros que certas piadas ferem o direito das pessoas. Como o senhor vê essa questão?
Todo extremo é ruim e por ter que ficar no meio termo é que muitas vezes a gente não encontra o parâmetro exato. O extremo da censura e do controle, espero que nunca mais. Outro extremo que se propaga é que o humor não tem limites ou a liberdade de expressão não tem limites. Ninguém pode usar da liberdade de expressão, entrar em uma sala de cinema e sair gritando: "fogo, fogo". Para que colocar pessoas em risco por uma brincadeira? Nem o direito à vida é sem nenhum tipo de limitação. A Constituição prevê a possibilidade de pena de morte em caso de guerra declarada.
E no caso de ser uma pessoa negra reclamando de uma piada de negros? O que ela difere de uma piada de português ou de fonoaudiólogos?
Todas essas piadas têm um elemento discriminador. No caso do humorismo e na piada, é mais complicado porque ele ofende a honra.
Mas aí no caso da piada do negro tem a questão da injúria racial que seria colocada no âmbito penal também.
Ela pode revelar, sim, um grupo tentando se sobrepor a outro, tentando, mesmo sem perceber, manter uma ideia de superioridade, mas como isso não é específico, sem ser direcionada a uma pessoa específica, acaba sendo aceita na sociedade, tendo em vista o direito à liberdade de expressão. A piada do português, do homossexual, a piada que o torcedor do time faz em relação ao outro, são genéricas. Se a gente aceitar que o pessoal de uma cidade não pode fazer piadas e brincadeiras com nascidos em outra cidade aí a gente cairia em uma ditadura do politicamente correto, e isso também acho que não pode.
Como lidar com essas questões na internet?
A internet segue o Direito como qualquer outra coisa. Só tem algumas diferenças, como a prova. Se eu fizer uma ofensa a você em um jornal impresso, você compra um exemplar, entra com uma ação, anexa um exemplar daquele jornal, resolvido. Se eu fizer a mesma ofensa pela internet, não adianta você pegar e imprimir, pois eu vou dizer que você mudou ou quando a pessoa pensar em processar eu tiro aquilo do ar.
O que deve ser feito então?
Você vai ter que elaborar uma ata notarial, ir até um cartório e fazer um documento com fé pública. A ofensa é a mesma e a ação que você está colocando contra mim são as mesmas de uma mídia impressa. A aplicação do direito é exatamente a mesma, só que é mais difícil.
O senhor discute também o uso de caricaturas em meio de comunicação. Como é isso?
Os jornalistas vão ficar bravos comigo. Às vezes o meio de comunicação vai dar uma notícia sobre uma pessoa e, em vez de uma foto, coloca uma caricatura. Até entendo que é algo que vai chamar a atenção, mas por que não a foto, que mostra a pessoa da maneira como ela se apresenta na sociedade normalmente, sem deformação nenhuma, e, sim, uma caricatura, que terá uma deformação da qual a pessoa pode não gostar? Tendo contato com esse tipo de situações, vivo me perguntando: pode ou não pode?
E como isso é visto no Brasil?
A única relação que se faz é com o Direito Penal, se há intenção de ofender. Mas ainda não é algo muito rigoroso. A minha visão seria mais do ponto de vista civil do que do ponto de vista moral, não na área criminal. No Brasil pouco se fala sobre isso e não existe uma doutrina definida. O que ocorre é que o intérprete, por gostar da atividade humorística, como qualquer pessoa, é condescendente com ela, sem o rigor que precisa ter. Muitas vezes a caricatura não se justifica, por melhor que seja e por mais talentoso que seja o caricaturista. E existem diferenças, por exemplo, entre a caricatura e a charge.
Qual é a diferença?
A caricatura tem como característica a finalidade humorística que consiste na deformação da imagem de uma pessoa. Ela pode mostrar o traço da personalidade da pessoa como senso de crítica, mas não é obrigatório. A charge não. É o desenho que pode ter deformação ou não. Ás vezes nem tanto, porque o objetivo não é esse. É uma crítica que se faz ao acontecimento. Na página 2 da Folha fica claro. Não é uma caricatura, é uma charge. É um desenho humorístico que critica algum fato que está sendo retratado pela própria Folha. Aí você tem a manifestação de crítica, liberdade de expressão. Isso é intocável. É uma expressão feita pelo humor, mas é válida. Você tem editorial do jornal, cartas do leitor, artigos assinados e a crítica do chargista. Muitas vezes se chama de caricatura o que na verdade está dentro de uma charge. E a charge é livre, porque está coberta pela liberdade de expressão.
Qual a importância dessa diferenciação para o Direito?
A Constituição prevê liberdade e direito de imagem, entre outras coisas. Então uma caricatura que não tenha um objetivo de crítica, sem interesse público, vai depender da autorização do caricaturado. Sei que isso tornaria a caricatura mais problemática porque talvez o caricaturado não concorde, mas existe direito de imagem. As pessoas têm esse poder de se resguardar. Já a charge é livre.
Essa autorização seria expressa ou poderia ser tácita?
O ideal seria que fosse expressa, mas ela pode ser tácita, por exemplo, se eu peço para o caricaturista elaborar a minha caricatura.
Por que essa autorização seria necessária?
Às vezes o caricaturista realça o ponto fraco de uma pessoa, ou alguma coisa que a pessoa não gosta. A Constituição diz que a imagem é protegida. Ela não faz ressalva à atividade humorística.
Mas e o direito de livre manifestação do artista?
Por um lado tem o direito do artista de expor o talento dele e do outro lado o direito da pessoa não querer que a imagem dela seja divulgada. Como a caricatura não tem, nesse caso, uma crítica, um objetivo maior, prevalece o direito individual.
Como definir essa fronteira?
É subjetiva. Isso no Direito não tem jeito.
Um veículo de comunicação deveria pedir a autorização para retratar as pessoas em caricaturas?
Sim. Seria mais seguro. Sei que isso limitaria o trabalho da imprensa, mas não acho que seja uma barreira intransponível. Poderia haver um cadastro ou um arquivo. Acho que não seria muito comum que pessoas recusassem porque é um sinal que ela tem uma projeção, relevância e o que dizer.
Isso não é censura?
Não é censura, porque seria uma coisa muito limitada. Seria censura se uma pessoa, por exemplo, pudesse impedir que nem sequer uma foto dela fosse divulgada em uma notícia desfavorável no jornal.
Há casos concretos?
Houve o caso de uma caseira de um condomínio que bateu o carro no estacionamento. O condomínio tinha um jornalzinho interno e fizeram uma charge com um desenho engraçado do acidente. Ela não gostou, entrou com uma ação por dano moral e perdeu porque aquilo era uma charge. Houve o acidente, era um fato concreto e mostraram aquilo de uma maneira engraçada.
E quando você tem uma caricatura dentro de uma charge, ou seja, um personagem com os traços deformados sendo retratado em um contexto?
Como isso é uma charge, me parece que é normal. Não tenho uma pesquisa nesse sentido, mas o que eu sinto ao vê-las é que a deformação da imagem não é tão intensa. Até porque o objetivo do chargista não é esse
Essa obrigatoriedade em pedir autorização não pode cercear o exercício profissional?
Não, porque o jornal, em vez de caricatura, certamente no banco de dados tem uma foto da pessoa. Ele pode colocar a foto. Não conheço exatamente o dia a dia de uma redação, a correria que deve ser no final, mas não acho que isso atrapalharia.
Como os tribunais vêm decidindo esse assunto: eles refletem esse pensamento do senhor?
Essa distinção não é feita e o que vai para os tribunais é a charge, que é a crítica a fatos, como a da pessoa do condomínio que não gostou daquilo.  Houve uma decisão no Supremo que o chargista entendeu que favorecia juízes. Um juiz não gostou daquilo e entrou com uma ação. Não ganhou porque era uma charge que falava dos juízes em geral. Não falava de um especificamente e o tribunal entendeu que aquilo poderia ficar dentro do aborrecimento.
Qual o posicionamento do senhor a respeito desses casos de uso de imagens, de bonecos, imitação de voz?
O padrão que eu tentei estabelecer sempre vai depender um pouco do raciocínio do juiz. Eu só procurei ter algum caminho. O que está por trás dessa atividade humorística é no sentido de crítica àquela pessoa? Resposta: sim. Está livre. Liberdade de expressão, de crítica, debate de ideias. Se é um mero humor relacionado àquela pessoa, como uma caricatura, aí a individualidade tem que prevalecer.
O senhor também trabalha com o conceito de paródia. Como defini-la?
Antes de fazer a pesquisa achava que paródia era pegar uma obra séria e convertê-la em humor. Mas ela não é só isso. Existe paródia sempre que se subverte um texto. É paródia pegar um texto sério e converter como texto cômico e no inverso também seria paródia, como pegar um romance do passado e transformá-lo em uma ficção científica, ou pegar uma ficção científica e transformar em uma história de amor. Tudo isso é paródia.
Há diferença entre a paródia séria e a humorística?
Se eu sou humorista e quiser pegar um texto sério e fazer uma paródia, fazer uma brincadeira, é livre. Não preciso nem pegar autorização do autor do texto sério. Mas se eu escrever um livro humorístico e alguém quiser converter em um texto sério terá que ter a minha autorização.
Por que a humorística é livre?
Porque isso tem um sentido de crítica e mostra como alguma coisa séria tem o seu lado cômico. O que não me convence, porque todas as outras formas de paródia também têm senso de crítica igual.
Por que essa diferença de tratamento?
A única explicação a que cheguei é que as pessoas se divertem quando assistem Todo Mundo em Pânico, e portanto acabam tendo uma tendência mais flexível. A rigor, se eu quiser pegar uma obra, um romance histórico e transformar em uma ficção científica, eu vou precisar da autorização do autor desse romance histórico. Mas se eu pegar esse romance histórico e transformar em uma brincadeira eu não precisaria.
Há lei estabelecendo isso?
É doutrina. A lei brasileira se limita a dizer que são livres as parábolas e paródias, que não seja só uma mera imitação do texto. E que não cause descrédito.
Isso está no Código Civil?
A Lei dos Direitos Autorais, no artigo 47. A partir daí fui pesquisar e vi que nos Estados Unidos já havia distinção de paródia-alvo e paródia-arma. Não é conceito meu. Vi que existia no exterior e estou tentando trazer para o Brasil.
É consenso isso nos Estados Unidos?
Não, mas isso se coloca lá. Há também autores espanhóis. Mario Sol Muntañola, Rodrigo Bercovitz Cano.
O senhor fala em imitação-arma, charge-arma e imitação-alvo. Poderia explicar esses conceitos?
Se eu pego um texto sério, faço uma brincadeira não para atingir esse texto, mas seja lá o que for, eu estou usando esse texto sério como arma.
Há algum caso em que isso ocorreu?
Isso ficou claro no caso O.J. Simpson [ex-atleta de futebol americano, acusado da morte da ex-mulher e do namorado dela]. A Dr. Seuss Enterprises processou a Penguin Books por ter parodiado a obra The Cat in the Hat by Dr. Seuss. No livro The Cat NOT in the hat by Dr. Juice, O.J. Simpson é retratado  vestindo o chapéu do gato e segurando uma luva ensanguentada. A editora se defendeu dizendo que o livro era uma crítica, que era humor.
O que a Justiça disse?
O Judiciário falou que o desenho foi usado como arma para criticar o O.J. Simpson, não tinha nenhuma relação com o desenho. Tenho o direito de criticar quem eu quiser? Tenho, mas não usando obra alheia.
E no caso de imitação?
Dependeria de autorização ter sósias para fazer comerciais na TV. Se eu quiser pagar pela imagem de uma pessoa famosa será muito caro. Ponho outro para fazer, um sósia, gasto 5% do que gastaria e o efeito é o mesmo. Legitimamente eu não estaria lesando aquela pessoa porque o corpo é de outro ser humano que está ali, mas é claro que a referência é a mesma.
Nesse caso teria que ter autorização?
Sim. Aí não tem nada a ver com humor. Na França já julgaram dizendo que não precisa, por ser outra pessoa que está ali, outra imagem que está sendo divulgada. Não concordo, já que a referência é óbvia.
Isso não pode acabar cerceando a atuação, principalmente dos artistas?
Não porque aí a lei de direitos autorias tem já algumas hipóteses em que ela considera o uso livre, não depende da autorização. Não há problema no filme fazer uma citação, talvez reproduzir um pequeno trecho de outro filme ou fazer uma referência.
Como no caso de Todo mundo em pânico, que o senhor acabou comentando.
Todo mundo em pânico já é paródia mesmo e é por isso que a gente ri.
Mas como limitar a citação?
No nosso direito, paródia livre seria só a humorística. Qualquer outra obra que não é humorística já não entraria na discussão da paródia. A discussão seria se está se fazendo citação na medida adequada, reprodução, ou se está usando o mesmo estilo. Quanto que é o razoável? A nossa Lei de Direitos Autorais também não diz.
Por que não se discute isso? Medo da censura?
É um assunto que no Brasil é totalmente nebuloso. Você não tem um caso concreto, até porque às vezes até um efeito prático não é muito fácil. Piada, por exemplo, tem autoria, muito difícil de provar, mas tem. Mas para fazer valer esses direitos é difícil.
Essas coisas mal chegam nos tribunais então?
Não existe. Quem reclama muitas vezes é taxado: "Ah, não tem bom humor". Por que a foto tem que ter autorização e a caricatura não, quando talvez tivesse de ser o inverso? Por que a paródia humorística não precisa de autorização e as outras paródias precisariam? É tudo trabalho artístico.
A ConJur publica uma caricatura do entrevistado junto com a entrevista. Tudo bem?
Eu acho ótimo.
Entrevista feita pela revista eeltrônica Consultor Jurídico, 9 de setembro de 2012, com o professor Marco Antonio dos Anjos.

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